Licenciamento ambiental, gestão de riscos ambientais no setor bancário e responsabilidade de bancos por danos ambientais causados por atividades financiadas:
atuação da FEBRABAN no PL de licenciamento ambiental demonstra que setor bancário está distante de levar a sério seus deveres de prevenção de danos ambientais
Diante de propostas que, por um lado, buscam simplificar o licenciamento ambiental, e por outro buscam pura e simplesmente enfraquecê-lo, como vemos em jogo no projeto de lei sobre o tema em andamento no Senado Federal, chama a atenção a articulação que vem sendo desenvolvida pela FEBRABAN no sentido de buscar impedir a responsabilização civil (ou seja, a responsabilização pelo custo da reparação) por danos ambientais decorrentes de atividades financiadas.
No Brasil, desde 2008 para o crédito rural (ainda que apenas para o bioma Amazônia) e desde 2014 para o crédito em geral (e também para outras operações financeiras desenvolvidas por instituições fiscalizadas pelo Banco Central do Brasil), existe o dever de implementar sistemas de gestão de riscos socioambientais pelas instituições financeiras – as regras foram ampliadas e aprofundadas em 2021 para as operações financeiras em geral e, para o crédito rural, isso se deu em vários momentos, sendo o último em junho de 2023. Além disso, o setor bancário brasileiro é bastante ativo em iniciativas de autorregulação em âmbito global, em que assumem compromissos voluntários para gerir riscos e oportunidades dessa natureza (ainda que muitas vezes não exista qualquer monitoramento sobre o efetivo cumprimento de tais compromissos), aos quais se dá imensa publicidade.
Isso significa que o setor bancário tem no mínimo uma compreensão básica do que significa gerir riscos ambientais, e sabe perfeitamente que gerir riscos deve ser uma forma eficiente de prevenir danos. Ocorre que, se essa gestão fosse efetivamente levada a sério, se os bancos fossem de fato diligentes ao buscar todas as informações ao seu alcance, mitigar os riscos e eventualmente negar crédito, investimentos ou a colocação de títulos no mercado de capitais quando as empresas não apresentam um desempenho ambiental minimamente adequado (incluindo o cumprimento da legislação), eles não teriam por que temer ser responsabilizados por danos ambientais causados por atividades financiadas. A tese defendida pelo Ministério Público, de responsabilização objetiva (independentemente do cumprimento de normas e de exercício de deveres de diligência), não tem tido acolhida no Judiciário e, para evitar a responsabilização, bastaria prevenir danos na medida do que está ao seu alcance.
E o que está ao alcance de instituições financeiras envolve, para começar, a verificação do cumprimento de normas ambientais pelas empresas financiadas, já que bancos podem solicitar livremente documentos e informações aos seus clientes, tais como: a) verificação de licenciamento ambiental vigente; b) indagação sobre o cumprimento das condicionantes da licença ambiental (quando é o caso de licenciamento) e sobre a existência de sistema de gestão de riscos socioambientais adequado à natureza, porte e localização do empreendimento; c) verificação da existência de autos de infração ambiental (e não apenas pelo IBAMA, mas também pelos órgãos ambientais estaduais, cuja competência é bem mais ampla que a do IBAMA) e, havendo, quais são as infrações apuradas e penalidades que poderão ser aplicadas; d) verificação de eventual embargo da área que requer crédito ou investimento, por órgão ambiental federal ou estadual, para atividades econômicas (diligência extremamente básica e que nada tem a ver com o licenciamento); e) verificação de desmatamento recente em imóveis rurais e solicitação da correspondente autorização para supressão de vegetação expedida pelo órgão ambiental; f) verificação da existência de investigações por ilícitos ambientais junto ao Ministério Público; g) verificação da existência de processos judiciais em matéria ambiental; h) verificação se a área onde se pretende desenvolver a atividade econômica financiada não coincide com terras indígenas, territórios quilombolas ou unidades de conservação, ou se não viola as normas do Código Florestal (que define áreas de preservação permanente e reserva legal de imóveis rurais); i) realização de diligências que decorrem de compromissos voluntários assumidos por instituições financeiras, bem como de suas próprias Políticas e normas internas; j) verificação do cumprimento de normas socioambientais aplicáveis especificamente ao setor econômico do empreendimento. Além disso, instituições financeiras realmente diligentes verificam o desempenho das empresas quanto a indicadores-chave de desempenho para o seu setor econômico, como o monitoramento de riscos ambientais na cadeia de produção, a intensidade de emissões de gases de efeito estufa, matriz e eficiência no uso de energia elétrica e de combustíveis, eficiência hídrica, eficiência no uso de matéria-prima e insumos em geral, tecnologias avançadas na gestão de resíduos, efluentes e emissões atmosféricas poluentes, entre outros. Para um aprofundamento jurídico no tema, é possível ler esse artigo aqui que Luciane Moessa publicou como resultado de sua pesquisa de Pós-Doutorado em Direito Econômico e Financeiro na USP.
Pois bem: o PL de licenciamento ambiental que tramita no Senado (PL 2159/2021) contém um artigo, o 54, em que se pretende limitar a responsabilidade civil de instituições financeiras por danos ambientais causados por atividades financiados tão somente aos casos em que as instituições financeiras não solicitarem a licença ambiental eventualmente cabível (ou solicitando, essa não existir). Ou seja, para citar um exemplo extremo, quando se tratar de uma atividade desenvolvida em área embargada por órgãos ambientais e os bancos não verificaram se havia ou não embargos ou, verificando e descobrindo que havia, concederam o crédito, realizaram o investimento ou colocaram o título da empresa no mercado de capitais ainda assim, de acordo com essa regra, eles não teriam qualquer responsabilidade pelos danos ambientais evidentemente causados. Note-se que isso afeta diretamente a violação ambiental mais comum no Brasil e que afeta tanto a nossa biodiversidade quanto as mudanças climáticas: o desmatamento, sobretudo o ilegal, pois há inúmeros empreendimentos agrícolas para os quais não é necessária a licença ambiental (e o PL em questão pretende ampliar o número dessas situações). Mas o mesmo vale para quaisquer outras violações ambientais e quaisquer outros setores econômicos.
Na prática, as instituições financeiras (por meio da FEBRABAN) estão defendendo junto aos Senadores membros da Comissão de Meio Ambiente do Senado que elas não têm deveres de diligência ambiental e que é preciso “desburocratizar a concessão de crédito” (esse é o termo utilizado no documento) – em suma, querem carta branca para financiar e investir em atividades poluidoras, contrariando tudo que a regulação bancária já exige, todos os compromissos voluntários que já assumiram e até mesmo suas próprias políticas. Ora, quem exerce seus deveres de diligência não iria defender uma regra para se tornar imune a responder pelas consequências de não exercer esses setores. Infelizmente, parece que a principal entidade de representação do setor bancário busca se aliar permanentemente a atividades econômicas que violam a legislação ambiental, já que obter o licenciamento é uma ínfima parcela da responsabilidade que cabe às empresas nessa matéria: após obter a licença, elas precisam cumprir as condicionantes nela previstas, além de não descumprirem todas as demais normas ambientais, muito além do licenciamento, como a Lei 9.605/1998, que define crimes e infrações ambientais, o Código Florestal, a legislação de recursos hídricos, de unidades de conservação e muitas outras aplicáveis especificamente a determinados setores.
Exigir (como já faz a regulação bancária) que as instituições financeiras busquem informações junto aos órgãos públicos competentes e também junto aos próprios clientes evidentemente não é atribuir a elas deveres de fiscalização ambiental – não são elas que aplicam autos de infração, instauram processos administrativos ou judiciais, mas elas podem e devem buscar essas informações. E não basta a regulação bancária trazer esses deveres (de forma infelizmente muito genérica) sem que existam consequências para o seu descumprimento – se não há consequências, não existe obrigação efetiva.
Uma das consequências deve ser o dever subsidiário (ou seja, se a empresa que causou diretamente o dano não pagar) de reparar os danos ambientais causados. Somente assim haverá incentivos para a efetiva prevenção dos danos, que hoje ocorre em dimensão mínima, como apontam os resultados do Ranking da Atuação Socioambiental de instituições financeiras, desenvolvido pela SIS. Atualmente, as instituições bancárias não consultam a maioria das bases de dados públicas disponíveis com informações ambientais e, mesmo quando consultam, não há evidências de que isso efetivamente gere mitigação dos riscos ou, em casos extremos, negativa de crédito. Elas estão claramente financiando atividades que causam danos ambientais com sua omissão ou até conscientemente, como nesse exemplo de operação apurada por “O Joio e o Trigo” no bioma Amazônia – e por isso querem fugir à responsabilização, ao dever de reparar os danos causados por atividades financiadas graças à sua complacência ou negligência.
Espera-se que o Poder Legislativo não permita que isso ocorra, retirando por completo o art. 54 do projeto de lei ou inserindo redação em que estão incluídos todos os deveres de diligências das instituições financeiras e a obrigatoriedade de que eles influenciem o processo de decisão sobre concessão de crédito, realização de investimentos e captação de recursos no mercado de capitais.