Luciane Moessa, Ph.D.
Diretora Executiva e Técnica da
Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS)
Em primeiro lugar, é preciso explicar para quem ainda não conhece o que é o RASA – o Ranking da Atuação Socioambiental de instituições financeiras brasileiras. O termo “instituições financeiras” é usado em sentido amplo aqui, para abranger não apenas bancos comerciais e instituições financeiras de desenvolvimento (que desenvolvem atividades de concessão de crédito e investimentos, ou seja, financiam uma série de atividades econômicas), mas também seguradoras (já que a operação de seguros é uma operação financeira) e entidades de previdência (pelo mesmo motivo – a gestão de planos de previdência também tem natureza financeira). Além disso, seguradoras e entidades de previdência são grandes investidores institucionais, financiando o próprio Poder Executivo federal, ao comprar títulos públicos, mas investindo também no setor produtivo, normalmente (mas não apenas) em empresas listadas na Bolsa, bem como em imóveis e projetos de infraestrutura. E a avaliação feita pelo RASA busca, em resumo, avaliar de forma objetiva, com base em informações divulgadas por elas próprias em várias fontes, em que medida todas essas instituições financeiras incorporam critérios ambientais, sociais ou climáticos em suas decisões relativas a crédito, investimentos, seguros e previdência.
Quem não atua no setor financeiro talvez não tenha noção da dependência que a nossa economia tem de obter recursos no setor financeiro, mas, para ilustrar isso, basta pensar que o PIB brasileiro (valor total de bens e serviços produzidos no país para consumo interno ou exportações, inclusive gastos do Poder Público, deduzido o valor das importações) alcançou R$ 2,7 trilhões no 3º. trimestre de 2023, sendo que o valor total das operações de crédito no Brasil alcançou em outubro R$ 5,6 trilhões, segundo dados do Banco Central do Brasil – é importante notar que 40% desse valor se refere a operações de crédito para pessoas físicas e 60% se destina a pessoas jurídicas. Além disso, temos todo o valor investido em renda variável (mercado de ações) e outros ativos – quando tratamos do setor de seguros e previdência privada aberta, o valor total investido é de R$ 1,8 trilhão e, quando se trata de fundos de pensão o valor é de R$ 1,2 trilhão. Por isso, se queremos tornar a economia brasileira sustentável, o setor financeiro como um todo precisa começar a levar a sério de verdade os impactos ambientais, sociais e climáticos das atividades que ele financia e para a qual são cobertos riscos através de seguros. E o risco ambiental e climático (que também tem efeitos socio-econômicos negativos) mais relevante no Brasil é, de longe, o desmatamento, sobretudo (mas não apenas) o ilegal. Dentre os efeitos econômicos negativos mais evidentes que ele possui é que deve reduzir nossas exportações para mercados como a União Europeia, devido à EU Deforestation Regulation, que veda a importação de commodities agrícolas e florestais oriundas de desmatamento (inclusive o legal), e o Reino Unido, que acaba de anunciar a edição de legislação que também proíbe a importação de algumas commodities agrícolas ligadas a desmatamento ilegal.
Exemplos negativos de situações em que isso não acontece existem aos montes, como nesse caso da seguradora Swiss Re, nesse caso envolvendo o banco Itaú, nesse envolvendo o Santander e como nesses casos envolvendo um produto que tem se disseminado no mercado de capitais que é o FIAGRO, que, como o nome indica, é destinado a investimentos no agronegócio (imóveis e empresas). Além disso, o próprio BNDES é o maior acionista da JBS, que não monitora os riscos de desmatamento em toda a sua cadeia de fornecedores, apresentando desempenho inclusive inferior às suas concorrentes nessa matéria.
O que o RASA faz é buscar diferenciar as instituições financeiras entre si nessa matéria, através da avaliação das suas políticas, da governança, da gestão de riscos e da composição dos portfólios (de crédito, de investimentos e de seguros), à luz de critérios ambientais, sociais e climáticos. Desde 2022, avaliamos em ciclos diferentes (considerando as peculiaridades de cada categoria) bancos comerciais, instituições financeiras de desenvolvimento, seguradoras e entidades de previdência. No âmbito do crédito, é preciso separar entre as operações de crédito rural, que são concedidas diretamente com produtores rurais, e operações que envolvem outras empresas da cadeia do agronegócio. Para o crédito rural, a regulação financeira é muito mais específica e exige determinadas diligências, o que não existe de forma clara para as demais operações de crédito. Isso por si só se reflete no desempenho dos bancos, que no geral se limitam a cumprir exigências regulatórias, restringindo as diligências ao bioma Amazônia (quando sabemos que o desmatamento continua subindo no Cerrado) ou consultando apenas as bases de dados constantes da regulação. Por exemplo, para os universos de bancos e instituições financeiras de desenvolvimento (que concedem crédito), constatamos que não existe uma única instituição que consulta bases de dados de órgãos ambientais estaduais sobre imóveis rurais embargados por desmatamento ilegal, a menos que elas estejam disponíveis online (e isso ocorre em apenas 6 Estados). A consulta ocorre apenas a áreas embargadas pelo IBAMA, mas a competência para embargar, sobretudo fora do bioma Amazônia, é normalmente dos órgãos estaduais. E embora existam bases de dados públicas disponíveis sobre desmatamento recente, não localizamos uma única instituição financeira que solicita ao potencial tomador de crédito ou verifica junto aos órgãos ambientais competentes se há autorização para supressão de vegetação para apurar se o desmatamento é legal – a exceção recente é o BNDES, que utiliza dados do MapBiomas, mas apenas para o crédito rural. Para as demais empresas da cadeia, os bancos e demais instituições financeiras deveriam, em primeiro lugar, verificar a localização da cadeia de produção das empresas financiadas – mas o que descobrimos no levantamento de informações públicas feito para elaborar o RASA foi que elas não sabem a localização nem mesmo das próprias empresas financiadas. E não, em regra, não verificam se as empresas que recebem crédito, investimentos ou seguros estão gerindo os riscos de desmatamento na sua cadeia de produção.
Outras bases de dados relevantes a serem consultadas nessa matéria e que verificamos que nenhuma instituição avaliada afirma consultar (não avaliamos todas as instituições que operam no mercado brasileiro, mas sim um número de instituições que cobre entre 60% e 85% do respectivo mercado) são as bases de dados do Ministério Público (inquéritos civis, TACs e ações coletivas em matéria ambiental, nas quais se busca responsabilizar os causadores de danos ambientais por meio de indenizações suficientes para reparar tais danos) e do Poder Judiciário, onde se podem buscar processos judiciais em matéria ambiental nas quais as empresas receptoras de crédito, investimentos ou seguros estejam sendo cobradas pelo pagamento de multas ambientais ou por indenizações de danos ambientais – e essas infrações e esses danos podem incluir o desmatamento ilegal. Essas são bases de dados públicas e gratuitas que são completamente ignoradas pelo setor financeiro. Além disso, encontramos, no geral, pouca informação disponível sobre a frequência e abrangência do monitoramento de tais riscos, sobre ações de mitigação adotadas e sobre em que medida situações de risco demasiado elevado repercutem no processo decisório de forma a ser negado o acesso a crédito ou a investimento. Há distinções sem dúvida, com algumas instituições financeiras se destacando junto às demais, sendo que o universo de instituições reguladas pelo Banco Central do Brasil tem desempenho muito melhor do que seguradoras e entidades de previdência, sendo que uma das explicações para isso provavelmente também é o fato de o BC ter começado a atuar na matéria antes dos demais reguladores financeiros e ter avançado mais do que eles até o momento – embora ainda possa avançar muito mais.
Por isso defendemos que reguladores devem estabelecer deveres muito mais claros para instituições financeiras de todas as categorias nessa matéria. E instituições financeiras responsáveis não precisam aguardar pela atuação regulatória para avançar. Esperamos ver esses avanços nos próximos ciclos do RASA!