A Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados realizou ontem, dia 23 de maio, audiência pública para discussão sobre a incorporação de aspectos socioambientais na concessão de crédito rural pela Resolução CMN 5.081/2023, que ajusta normas referentes a impedimentos sociais, ambientais e climáticos para concessão desta modalidade de crédito. Também foi discutida a legalidade do Decreto 11.688/2023, que trata da regularização fundiária das áreas rurais situadas em terras da União e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. A audiência foi presidida pelo Deputado Federal Henderson Pinto (MDB-PA). Cláudio Filgueiras, Chefe do Departamento de Regulação, Supervisão e Controle das Operações do Crédito Rural e do PROAGRO (DEROP) do BC, foi a primeira autoridade a falar na audiência. O DEROP é responsável pela gestão do SICOR, sistema que registra todas as operações de crédito rural no país, havendo atualmente mais de 5 milhões de operações registradas. Ele esclareceu que o DEROP já começou a aplicar a Resolução CMN 5081/2023 para todas as bases de dados socioambientais (havendo 1300 verificações automatizadas, inclusive monitoramento por cerca de 190 satélites), exceto florestas públicas não destinadas. Ressaltou que o mero uso do CAR já permite detectar fraudes gravíssimas, como recortes no polígono do imóvel para excluir a parte embargada por desmatamento ilegal (o caso mais relevante envolvia uma operação de R$ 23 milhões) – e prestar declarações falsas para obter crédito é crime contra o sistema financeiro nacional (Lei 7.492/1986), sendo que o DEROP está fazendo as devidas comunicações ao Ministério Público. Além disso, o cruzamento dos dados do CAR com outras bases de dados socioambientais e financeiras permitiu identificar o caso de um único imóvel no Rio Grande do Sul que foi objeto de 445 operações de crédito rural, em valores totalmente incompatíveis com a sua área (esse imóvel não possuía irregularidades ambientais, por isso foi usado para esse número de operações). Cláudio também falou a respeito da evolução do número de operações negadas desde 2020 até 2024. Foram apenas 5 no primeiro ano, totalizando R$ 8,05 milhões. Em 2024 já são 891 (total de R$ 795 milhões). Neste intervalo de tempo, passou-se a negar crédito para propriedades localizadas em áreas indígenas e quilombolas. Em 2024, passou-se a considerar impedimentos relacionados ao imóvel. Cláudio argumenta que são as instituições financeiras quem devem fazer este tipo de controle. Ele encerra sua apresentação informando que em 2024 houve um total de 19.477 operações bloqueadas, totalizando R$ 4,7 bilhões, pelo fato de o empreendimento estar fora do CAR ou pelo CAR não ter relação com o empreendimento. Richard Torsiano, CEO da Terra Analytics e Instrutor da Escola Nacional de Magistratura, falou sobre estudo que conduziu utilizando dados fundiários, agrários e ambientais nacionais, buscando identificar quantas propriedades rurais apresentam irregularidades segundo o disposto na Resolução 5.081/2023 do CMN. De 7 milhões de imóveis rurais analisados, 873 mil (12%) estão irregulares. A maioria destes imóveis (502 mil) está localizada na Amazônia. O mais interessante do levantamento produzido pela Terra Analytics é que a proporção de irregularidades fundiárias (que por si só deveria impedir o acesso a crédito, por simples razões econômico-financeiras) é muito maior do que a de irregularidades ambientais (cerca de 4 vezes maior), ao menos com as bases de dados integradas até o momento (faltam ainda processos judiciais e dados do Ministério Público, que a SIS vai trabalhar em parceria para integrar). Moisés Savian, Secretário de Governança Fundiária, Desenvolvimento Territorial e Socioambiental do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), comentou sobre a iniciativa de seu Ministério de percorrer os Estados que compõem a Amazônia para debater com governos locais sobre a regularização fundiária de terras. Recentemente, foi assinado acordo com o governo do Pará, para que este ceda gratuitamente ao governo federal os dados do SICARF (Sistema de Cadastro e Regularização Fundiária). O MDA entende que é preciso construir uma inteligência de dados nos Estados para fazer avançar a governança fundiária de terras estaduais. André Lima, Secretário Extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), comentou sobre proposta do Ministério para criação de um novo manual de classificação de florestas públicas, visando facilitar a regularização fundiária de fragmentos de florestas em áreas ocupadas que estavam sendo consideradas florestas públicas dentro do Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP). André também salientou que embargos de áreas é um conceito muito mais restrito que desmatamento ilegal, pois esse pode ser apurado por dados de satélite (como faz o INPE), seguido de solicitação de Autorizações para Supressão de Vegetação (ASVs) aos proprietários ou posseiros rurais – e a regulação do crédito rural nem sequer exige isso ainda.Ele destacou ainda que menos de 2% dos produtores rurais desmatam ilegalmente e relatou as diversas iniciativas do governo federal para apoiar os produtores que não desmatam no bioma Amazônia, como as previstas no Decreto federal 11.687/2023, que beneficiam Municípios em que ocorre queda no desmatamento, e programas de pagamentos por serviços ambientais. Graças a iniciativas como essa, o desmatamento na Amazônia acumula uma redução de 65% entre agosto de 2022 e 15 de maio de 2024 (dado mais recente). Por último, um dado fundamental trazido por ele foi que aumentou mais de 1000% a demanda de seguro agrícola por quebra de safra em razão de eventos climáticos em 2023. Além disso, tanto ele quanto Moisés explicaram que o Decreto que regulamentou o art. 5º. da Lei 11.952/2009 (regularização fundiária) está sendo revisto para incluir pequenos imóveis da agricultura familiar. Luciane Moessa, Diretora Executiva e Técnica da SIS, iniciou sua fala ressaltando a necessidade de entender que a pauta climática é global, e não apenas nacional. O agronegócio, setor responsável por 25% do PIB nacional e por quase 50% das exportações, é o responsável por mais de 90% do desmatamento (causador de 50% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil) e a Regulação anti-desmatamento da União Europeia que começa a vigorar esse ano já proíbe que empresas com atuação na UE importem produtos oriundos de desmatamento (legal ou ilegal), havendo iniciativas nesse sentido também no Reino Unido, EUA e China – e todas elas exigirão o rastreamento de toda a cadeia de valor da pecuária e da soja. Luciane salientou também que o deputado de Rondônia Thiago Flores tem razão ao apontar que estão faltando autoridades essenciais nessa audiência pública. Como o foco principal do debate envolve a regularização fundiária de imóveis rurais na Amazônia, onde 44% das propriedades rurais podem ser impactadas pela Resolução CMN 5081/2023, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) deveria estar presente, já que, no Estado do Pará, onde ocorre cerca de 40% do desmatamento no Brasil, o governo estadual tem feito o “dever de casa” em matéria de regularização fundiária, mas o governo federal, que é quem gerencia as florestas públicas não destinadas, não tem feito isso por deficiências técnicas e/ou financeiras. Luciane também chamou a atenção para o consenso apontado em diversas falas anteriores quanto à falta de estrutura de fiscalização do IBAMA e ainda maior de seus congêneres estaduais, bem como quanto à falta de estrutura do INCRA, que é o órgão responsável pela regularização fundiária na esfera federal. É importante lembrar apenas que parcerias com o setor privado nessa matéria são soluções de curto prazo, pois o órgão integra a espinha dorsal da Administração Pública e precisa mesmo é da realização de concursos para contratar servidores, criação de novos cargos em matérias extremamente técnicas (e isso depende de lei federal), bem como de aquisição de equipamentos de informática e serviços de tecnologia de informação necessários para viabilizar suas funções (e isso também depende de orçamento público e/ou de recursos oriundos da cooperação internacional). Ainda, ela reconheceu que a assessora da CNA tem razão quando afirma que o CAR ainda não é uma fonte confiável de diligências para concessão de crédito, pois menos de 5% dos dados inseridos foram validados pelos órgãos ambientais estaduais – é claro que é preciso lembrar que a inserção das coordenadas geodésicas é uma informação essencial e que, em caso de fraudes como as relatadas pelo Chefe do DEROP, Cláudio Filgueiras, está caracterizada a prática de crime contra o sistema financeiro nacional. Luciane propõe a utilização pelo sistema financeiro de dados do INPE (dados de satélite após análise por técnicos), seguida da solicitação ao produtor rural de sua Autorização de Supressão de Vegetação (ASV), quando houver desmatamento – isso é que é preciso para verificar se o desmatamento é ou não ilegal. Por fim, Luciane respondeu às críticas à legalidade da Resolução 5.081/2023 do CMN, argumentando que o Executivo deve sim atuar na esfera regulamentar em matérias extremamente técnicas e que impedir isso paralisaria o Banco Central, a SUSEP (que regula o setor de seguros e previdência complementar aberta), a CVM (que regula o mercado de capitais), a PREVIC (que regula os fundos de pensão) e o CADE (que atua em defesa da concorrência). Além disso, salientou ela, que é ex-Procuradora do Banco Central (2007 a 2016), que a jurisprudência é amplamente favorável ao exercício do poder regulamentar pela autarquia e pelo Conselho Monetário Nacional, sobretudo em matéria de crédito rural, pois a Lei 4.829/1965 é muito clara quanto à necessidade de regulação do assunto em nível infralegal (como foi apontado na exposição de Cláudio Filgueiras no início da audiência). Ela ressaltou desconhecer qualquer processo judicial em que a autarquia tenha sido vencida, em primeira, segunda ou terceira instância (e o tribunal competente no caso é o Superior Tribunal de Justiça, guardião da legislação federal), nessa matéria. E qualquer Decreto Legislativo que tentasse sustar os termos da Resolução CMN 5081/2023 representaria uma invasão de competências do Poder Executivo, violando a cláusula pétrea da separação de poderes (artigo 60 da Constituição Federal), o que ensejaria a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal (por se tratar de matéria constitucional), com pedido de liminar para suspender os efeitos do Decreto Legislativo. Em resumo, o questionamento não se sustenta juridicamente. Luciane Moessa é advogada (graduação na UFPR), Mestre (UFPR) e Doutora (UFSC) em Direito Público, tendo sido pesquisadora visitante na Universidade do Texas. É autora de 4 obras individuais em Direito Público e mais de 40 artigos publicados em revistas científicas e capítulos de obras coletivas. Fez pesquisa pós-doutoral na USP em Direito Econômico e Financeiro, sobre o tema “Sistema Financeiro e Desenvolvimento Sustentável”, título de seu último livro publicado pela Amazon em 2018. Durante a pesquisa pós-doutoral, ela foi pesquisadora visitante na Università Luigi Bocconi, em Milão, e de lá realizou pesquisa empírica em outros 6 países da Europa ocidental (Holanda, Suíça, França, Suécia, Reino Unido e Alemanha). Em abril de 2024, publicou capítulo da obra “Sustainable Finances and the Law: between public and private solutions”, da renomada editora Springer. Nesse artigo, Luciane aborda regulações bancárias em matéria socioambiental e climática em nível global, descrevendo o que há de mais avançado na matéria e apresentando uma proposta para um arcabouço robusto no tema que seja aplicável a qualquer país. Os demais participantes foram Marcelo Benedito Lara da Silva, Vice-Presidente do Sindicato Rural de Santarém, Gilson Dill, Prefeito de Novo Progresso (PA), Aveilton Souza, Deputado Estadual do PL-PA, Thiago Flores, Deputado Federal do Republicanos-RO, Airton Faleiro, Deputado Federal do PT-PA, Samanta Pineda, Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Sustentável, Thiago Braz Rocha, Consultor de Política Agrícola da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (APROSOJA), Wilson Vaz de Araújo, Diretor do Departamento de Política de Financiamento ao Setor Agropecuário do Ministério da Agricultura e Pecuária, Francisco Erismá Oliveira Albuquerque, Coordenador-Geral de Crédito Rural e Normas do Ministério da Fazenda e José Henrique Bernardes Pereira, Assessor Técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Assista à gravação da audiência: https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/72867