Luciane Moessa, Ph.D.
Diretora Executiva e Técnica da
Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS)
Na última quinta 29 de junho, foi publicada a Resolução CMN 5081/2023, por meio da qual o BC fortalece claramente a consideração de fatores socioambientais na concessão de crédito rural, ou seja, crédito para produtores rurais (as normas não atingem diretamente, portanto, outros elos da cadeia de produção) – como explicarei a seguir, o impacto maior diz respeito a riscos de desmatamento ilegal. Talvez pela influência de São Pedro (o santo do dia) tentando nos proteger das mudanças climáticas, foi exatamente nesse dia que começou a vigorar a nova Regulação da União Europeia que veda a importação de algumas commodities agrícolas por empresas situadas na região quando oriundas de áreas desmatadas recentemente – com a diferença de que não importa se esse desmatamento é legal ou ilegal.
Ainda que tenha sido publicada meses antes, vale mencionar ainda, nesse contexto, ainda que com impacto ínfimo (pelas razões que também detalharei) o último ato normativo de autorregulação da FEBRABAN, SARB 26/2023, publicado em março, mas divulgado amplamente apenas no fim de maio, que mirou no setor certo, a pecuária bovina, que é o maior vetor de desmatamento no Brasil (seguido pela soja), mas usou uma estratégia bastante fraca, ao abranger apenas crédito para frigoríficos, em um mercado em que os grandes players se financiam basicamente via mercado de capitais (JBS, Marfrig e Minerva, por exemplo, são empresas listadas na B3 e em outras Bolsas no exterior), não via crédito.
A nova regulação do crédito rural
Uma das principais inovações da nova resolução do CMN é a proibição da concessão de crédito rural em áreas embargadas não apenas pelo IBAMA, mas também por órgãos ambientais estaduais, que atuam com uma frequência muito maior do que o IBAMA nessa matéria, por uma questão de definição de competências (obrigações) de cada esfera federativa, feita em nível legislativo. A norma anterior (Resolução BCB 140, de 2021), além de mencionar apenas o bioma Amazônia, tinha um impacto diminuto, pois só incluía as áreas embargadas pelo IBAMA. É importante notar, porém, que essa regra só entra em vigor em 2 de janeiro de 2024. O estudo que a SIS publicou em março desse ano incluía (pág. 21) essas duas recomendações essenciais para o aprimoramento da regulação do crédito rural – muito embora outras também sejam necessárias. Além disso, defendi essas mudanças, salientando que instituições financeiras, em sua maioria, se limitavam a consultar áreas embargadas pelo IBAMA e que isso era consequência da falha na regulação, em diversos eventos públicos, como esse promovido pela Convergência pelo Brasil em agosto de 2022, esse webinar da Folha de São Paulo sobre mudanças climáticas em dezembro do mesmo ano e, pela última vez, num workshop da Amsterdam Declaration Partnership, realizado pela Embaixada da Holanda em janeiro de 2023. Para que essa norma tenha ainda mais impacto, é muito importante que mais órgãos ambientais estaduais disponibilizem essas informações online para uso do setor financeiro. É claro que os bancos, agências de fomento e cooperativas de crédito podem solicitar do produtor rural uma certidão de que a área não está embargada, mas a consulta online agilizaria bastante o processo. Hoje, é muito pequeno o número de Estados que disponibilizam essas informações online, valendo mencionar os exemplos positivos dos Estados do Pará e Mato Grosso.
Mas há outras bastante importantes: a norma de 2021 proibia a concessão de crédito rural para atividades em imóveis rurais com inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR) cancelada (normas anteriores já haviam feito essa previsão, mera consequência de exigência do Código Florestal). Entretanto, a nova proíbe também para imóveis com inscrição no CAR suspensa, sendo que a suspensão é possível consequência de irregularidades ou omissões constantes do CAR.
Além disso, a norma proibiu a concessão de crédito rural a imóvel total ou parcialmente inserido em floresta pública não destinada. Para entender a relevância desse problema no bioma Amazônia (que concentra as maiores áreas de desmatamento), vale referir os dados contidos nesse estudo publicado em abril de 2023 pela iniciativa Amazônia 2030:
“A Amazônia enfrenta um grave problema de indefinição de direitos fundiários. A incerteza fundiária afeta quase 30% de seu território, totalizando 143,6 milhões de hectares de áreas públicas não destinadas, áreas sem informação fundiária e áreas ocupadas de maneira irregular. Sem destino claro, essas áreas são alvo de invasões, grilagem e desmatamento, concentrando 41% da perda florestal da última década. (…) Existem 57,9 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas inseridas no Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP). Além disso, estima-se que outros 29,2 milhões de hectares sejam possivelmente florestas públicas não destinadas e que não estão cadastradas no CNFP. Essas áreas podem estar sob diversos tipos de ocupação, incluindo áreas indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, mas ainda não tiveram suas demandas territoriais atendidas.”
Ainda, houve inclusão, para efeitos de definição de terras indígenas (a sobreposição total ou parcial do imóvel com elas também impede a concessão do crédito), de terras “regularizadas ou definidas como Reserva Indígena no Sistema Indigenista de Informações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI)” (na redação anterior, constavam apenas terras homologadas).
Por fim, houve também pequena, mas relevante alteração no que diz respeito à proibição de crédito para imóvel com sobreposição total ou parcial com unidade de conservação: agora passou-se a exigir que a unidade esteja registrada no Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC), gerido pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o que implica uma segurança para o setor financeiro sobre qual a base de dados a ser consultada, mas fortalece a necessidade de que o MMA mantenha esse cadastro permanentemente atualizado, com unidades de conservação federais, estaduais e municipais.
A norma de autorregulação da FEBRABAN para pecuária bovina
Já a norma da FEBRABAN, como dito, vale apenas para frigoríficos, tendo como foco o rastreamento da origem do gado em toda a cadeia de produção, para que não provenha de áreas vinculadas a desmatamento ilegal. Como ponto negativo dessa iniciativa, que produzirá efeitos apenas a partir de janeiro de 2024, além da limitação ao crédito para frigoríficos (não abrangendo a captação de recursos no mercado de capitais, sendo que a FEBRABAN possui, por exemplo, vários bancos de investimentos como associados), o fato de que: a) a exigência se limita ao bioma Amazônia; b) a consulta a áreas embargadas por órgãos ambientais estaduais só é obrigatória quando eles disponibilizem essas informações pública e eletronicamente (excluindo-se qualquer proatividade dos bancos para irem em busca das informações); c) exclusão das propriedades com menos de 100 hectares. Além disso, os prazos previstos na norma não se aplicam aos frigoríficos de pequeno porte (e a norma nem sequer define ainda o que seria “pequeno porte”). Como destaques positivos, o fato de focar em outro elo da cadeia de produção (os frigoríficos) e o fato de mencionar também a necessidade de consultar “autorizações de supressão de vegetação quando da detecção de polígonos de desmatamento”. Isso também seria uma providência que poderia ter sido incluída na nova regulação do crédito rural, já que não é preciso esperar o órgão ambiental competente atuar para que o desmatamento seja considerado ilegal. Se não houver autorização (e cabe às instituições financeiras solicitarem de seus clientes a autorização no caso do crédito rural e, no caso dos frigoríficos, exigir que eles solicitem de seus fornecedores diretos e indiretos), o desmatamento é ilegal.
Além disso, o setor bancário poderia ir mais a fundo e se alinhar às exigências da União Europeia e abranger qualquer forma de desmatamento (o legal e o ilegal), ainda mais considerando-se que, no bioma Amazônia, a maior parte do desmatamento é ilegal, de modo que o próprio custo administrativo de exigir a diferenciação não parece valer o esforço, na prática.
A nova regulação da União Europeia
A regulação da UE afeta diretamente as exportações brasileiras para essa região que é o terceiro maior parceiro comercial brasileiro em termos de aquisição de nossos produtos (após China e EUA). A norma abrange especificamente seis commodities: carne bovina, soja, óleo de palma, madeira, borracha, café e cacau. E exige o rastreamento em toda a cadeia de produção-
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que ela abrange tanto desmatamento quanto degradação florestal (item 35), não abrangendo, infelizmente, outros biomas cuja vegetação não é florestal, como o Cerrado (a intenção é incluir no futuro).
Em segundo, é crucial ressaltar que ela engloba, além da exigência de estar livre de desmatamento, a exigência de que a produção esteja em acordo com todas as normas do país, ou seja, não apenas as ambientais, mas as sanitárias, trabalhistas, tributárias, etc. No Brasil, a regulação do crédito rural, por enquanto, exige apenas que o tomador do crédito não figure na “lista suja do trabalho escravo”, e que não ocorra sobreposição do imóvel com terras indígenas ou territórios quilombolas.
Em terceiro, mas não menos importante, observe-se que a data definida pela norma a partir da qual não pode ter ocorrido qualquer forma de desmatamento na área é 31 de dezembro de 2020.
A norma é bastante extensa e o propósito desse artigo não é descrevê-la por completo, mas apenas salientar seus pontos de convergência com relação às iniciativas no âmbito do setor financeiro no Brasil, bem como indicar que ela vai muito além.
Considerando que o setor agrícola brasileiro é extremamente relevante na nossa pauta de exportações, é inegável reconhecer que uma adequação aos parâmetros dessa norma não apenas traria inúmeras vantagens ambientais, sociais e climáticas, já que o desmatamento responde por cerca de metade das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, mas também reduziria riscos financeiros, pois as empresas que não se adequarem não terão mais acesso ao mercado representado pelos 26 países da União Europeia.
O que falta
Além da necessidade de maior transparência de bases de dados ambientais em nível estadual (o mesmo que foi dito sobre áreas embargadas vale para autorizações de supressão de vegetação e também para autos de infração em matéria ambiental em geral – são pouquíssimos os Estados nos quais essa informação é disponibilizada online), é importante notar que associações similares à FEBRABAN, como ANBIMA (para gestoras de investimentos), CNSeg (para seguradoras e entidades de previdência complementar) e ABRAPP (para fundos de pensão) também têm sua contribuição a dar nessa história. São as seguradoras e entidades de previdência que possuem títulos (de renda fixa ou ações) dos grandes frigoríficos brasileiros em seu portfólio, por exemplo. A iniciativa Investidores pelo Clima já vem atuando nessa seara, mas o tema merece uma atuação setorial mais concertada. Além disso, é também papel do regulador de seguros (SUSEP) fazer exigências dessa natureza quanto aos investimentos das seguradas e, no mínimo, quanto ao seguro rural. Ainda, cabe à PREVIC regular o tema quanto aos investimentos de fundos de pensão. E cabe à CVM exigir que empresas que captam recursos no mercado de capitais sejam muito mais transparentes do que são hoje quanto à gestão de riscos socioambientais e climáticos em sua cadeia de produção. Voltaremos ao tema em futuros estudos a serem produzidos pela SIS.
Em termos de regulação do crédito rural, além da menção à proibição de crédito rural a áreas onde foi apurado desmatamento por satélite em período recente (digamos, nos 2 anos anteriores à operação) e, ao ser solicitada a autorização de supressão de vegetação, essa não foi fornecida pelo produtor rural, poderia ser feita menção (ainda que isso não tenha consequência de gerar proibição) de que, para pecuária bovina, deve ser dada preferência na concessão de crédito aos produtores rurais que adotem mecanismos de rastreabilidade do gado, viabilizando o monitoramento pelos frigoríficos de toda a cadeia.
Em suma, é preciso caminhar em direção ao alinhamento entre as diversas iniciativas, o que geraria diversas sinergias em direção a interesses que são compartilhados por todos na esfera ambiental, social e econômica – todas elas afetadas pelas questões de clima e biodiversidade.