A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) realizou, entre outubro de 2023 e janeiro de 2024, consulta pública para debater proposta de norma sobre os Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas do Agronegócio (FIAGRO), em substituição à Resolução CVM 39, de 2021, que tinha caráter experimental. Este instrumento financeiro foi lançado em 2021 e, de acordo com dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), ao final de 2023, já existiam 93 fundos que, juntos, totalizavam um patrimônio líquido de R$ 24,3 bilhões.
Por meio do FIAGRO, os recursos de investidores são aplicados em ativos do agronegócio, sejam eles de natureza imobiliária rural ou de atividades relacionadas à produção do setor. A consulta pública recentemente encerrada pela CVM colocou em discussão uma nova norma definitiva, que permitirá aos FIAGRO aplicarem recursos no agronegócio brasileiro por meio da aquisição de ativos que já fazem parte do mercado local, como direitos creditórios, imóveis e participações societárias. Também é proposto que possam participar do mercado regulado de carbono (compulsório ou voluntário), inclusive por meio de fundos dedicados a esse mercado.
A contribuição da SIS para a consulta pública se concentrou na gestão dos riscos socioambientais e climáticos dos empreendimentos que integram a carteira de investimentos dos FIAGRO. Este tema não foi abordado na minuta de norma, mas sua consideração é fundamental, visto que os riscos e impactos socioambientais e climáticos dos empreendimentos receptores de investimentos apresentam relevância financeira, além deste ser um aspecto importante para um universo cada vez maior de investidores preocupados com as externalidades geradas pelas atividades que recebem investimentos.
Pesquisas robustas citadas na contribuição da SIS têm demonstrado que, para setores econômicos em geral, existe correlação positiva entre integração de fatores ASG (ambientais, sociais e de governança) e rentabilidade de empresas e investimentos. O horizonte de tempo é um fator muito relevante, e o agronegócio é um dos primeiros setores a sentir os efeitos financeiros de fatores climáticos e socioambientais, pelas características próprias de seus processos produtivos e por sua alta dependência de recursos naturais.
Cada vez mais regulações estão buscando reagir a este cenário. Passou a vigorar em junho de 2023 a nova Regulação da União Europeia que veda a importação de algumas commodities agrícolas por empresas situadas na UE quando oriundas de áreas desmatadas recentemente, não importando se esse desmatamento é ilegal ou não. Essa norma, que abrange as commodities carne bovina, soja, óleo de palma (azeite de dendê), madeira, borracha, café e cacau, afeta as exportações brasileiras para a região. Nosso país se adequar à norma seria benéfico não apenas do ponto de vista ambiental, climático e social (dada a importância do setor agrícola para o PIB e as exportações nacionais e dado o fato de o desmatamento responder por cerca de metade das nossas emissões de gases de efeito estufa); seria importante, também, para a redução de riscos financeiros, pois as empresas locais que não se adequarem (lembrando que muitas delas são exportadoras e operam no mercado de capitais) não terão mais acesso ao mercado representado pelos 26 países da União Europeia num futuro próximo.
O setor do agronegócio possui riscos e impactos climáticos e socioambientais específicos e bastante significativos. Sua expansão, de acordo com dados da FAO, impulsiona quase 90% do desmatamento global, a grande maioria em biomas tropicais (sendo que 60% do desmatamento nestes biomas é impulsionado pela carne bovina, soja, óleo de palma, papel/celulose e borracha, segundo estudo publicado na base de dados “Our World in Data”). O Brasil foi o principal país em perda de floresta primária em 2020, com 1.704.090 hectares (WRI); aqui, o desmatamento para a expansão das áreas de pastagem está intimamente relacionado com questões fundiárias, uma vez que a pecuária é usada como forma de grilagem ilegal de terras públicas. Em relação a impactos climáticos, destaca-se o fato de que atividades do setor de agropecuária (sem considerar desmatamento) representaram 25% das emissões de GEE do país em 2021.
É importante observar que as atividades agrícolas de produtores rurais (que são as que impulsionam o desmatamento diretamente) no Brasil possuem, basicamente, quatro fontes de financiamento: a) crédito rural com recursos públicos (do Orçamento da União) e recursos obrigatórios do setor bancário; b) crédito rural com recursos livres do setor bancário; c) captações de recursos usando títulos de crédito (muitos deles negociados no mercado de capitais), envolvendo investidores e/ou empresas da cadeia de produção (tanto fornecedoras de insumos quanto adquirentes da safra), muitas vezes usando a própria safra como forma de pagamento e d) capital próprio.
O mercado de capitais vem ganhando relevância como fonte de captação de recursos até mesmo para produtores rurais – para grandes empresas da cadeia, o peso é ainda maior. Apesar disso, há falta de simetria em sua regulação quando comparada com as regulações do crédito bancário e da gestão de investimentos de seguros e previdência, que ainda possuem lacunas relevantes, mas já reconhecem a relevância do desempenho ASG para investimentos em geral, não apenas em fundos que usem algum tipo de rótulo em matéria ASG.
Também no mercado de capitais, portanto, deve haver a devida gestão de riscos e impactos climáticos e socioambientais no setor agrícola, começando com a identificação de tais riscos. Ela pode ser feita em dois níveis, complementares: i) cumprimento legal e ii) eficiência/desempenho climático e socioambiental. A contribuição da SIS apresenta uma lista não exaustiva de temas relevantes no setor, acompanhada de indicadores: temas de cumprimento legal são apresentados de forma separada para o imóvel rural e para frigoríficos, laticínios e demais empresas da cadeia do agronegócio. São apresentados, também, temas de desempenho/eficiência socioambiental e climática que constam em padrões globais, como IFC, SASB, GRI entre outros, separadamente para imóveis rurais e empresas, e também conforme a localização das operações seja ou não relevante.
A SIS propõe que as gestoras de FIAGRO realizem diligências mínimas, para que ocorra adequada gestão de riscos climáticos e socioambientais que envolvem o setor do agronegócio, tanto para imóveis rurais quanto para todas as empresas receptoras de investimentos que operam na cadeia. É preciso, portanto, que haja consulta a bases de dados públicas disponíveis em nível federal e estadual para verificar o cumprimento (ou indícios de descumprimento) da legislação ambiental e social aplicáveis ao setor, bem como a busca de informações adicionais junto aos proprietários dos imóveis rurais e às empresas da cadeia do agronegócio; também é necessária consulta a dados públicos ou privados para verificar o desempenho climático e socioambiental dos imóveis e empresas, buscando identificar a localização dos empreendimentos, quando relevante, para que a avaliação seja mais acurada. E naturalmente, deve ficar evidenciado que a identificação dos riscos influenciou o processo decisório, inclusive na seleção dos ativos que irão compor cada FIAGRO, devendo haver também o seu monitoramento periódico.
A última recomendação da SIS diz respeito a deveres de transparência mínimos das gestoras de fundos FIAGRO. Estas devem, além de realizar os processos de diligência em temas climáticos e socioambientais propostos, divulgar em lâmina dos fundos e em seus websites informações de localização de imóveis rurais e nomes de empresas receptoras de investimentos; temas socioambientais verificados em termos de cumprimento da legislação, fontes consultadas e diligências realizadas; temas socioambientais verificados em termos de desempenho climático e socioambiental, fontes consultadas e diligências realizadas; resultado das análises de riscos climáticos e socioambientais e, por fim, a periodicidade e abrangência do monitoramento periódico dos riscos e impactos socioambientais e climáticos e a divulgação desses resultados.
Leia a contribuição da SIS na íntegra: Consulta pública sobre regras específicas dos fundos de investimento nas cadeias produtivas do agronegócio – FIAGRO